segunda-feira, 10 de agosto de 2009

A mãe que lutou por seus 40 filhos

Seu nome é Flordelis

Quem olha para sua aparência frágil e pequena, nem se dá conta de que está diante de alguém que arriscou a vida para salvar gente desprotegida de tudo e de todos.

Jacarezinho, subúrbio do Rio de Janeiro. Uma garota ocupa seu tempo percorrendo a favela. Vai sozinha; leva apenas coragem e uma proposta séria de apresentar as “boas novas” do Evangelho aos que têm sede de pão e de justiça. Depois de crescida, ela rompe paradigmas, resgata corpos e mentes desnutridos, amontoa crianças dentro de casa, é chamada de seqüestradora, enfrenta bandidos, a própria Justiça, e faz de sua vida uma prova viva do que é ser legitimamente cristão.
Hoje, vivem em sua casa a paz, a alegria e 40 crianças, sendo 37 adotadas. Sempre acompanhada do marido, o pastor Anderson do Carmo, Flordelis, além do reconhecimento por seu trabalho, colhe os frutos de tantas lutas e conquistas: o amor de seus filhos, o orgulho de vê-los crescer com educação e afeto, a total cumplicidade no casamento e a amizade de famosos e anônimos, que foram se juntando à sua missão.
Perguntada sobre como faz para manter tanta criança vestida e alimentada, Flordelis não vacila: “Deus me deu a voz, o dom de cantar”. E o crescimento do ministério como cantora não só a ajuda no sustento da família – ela vende seus CDs pelas igrejas – como vem gerando apoio e respeito da mídia e do segmento artístico.
Depois de todos esses sonhos realizados, Flordelis não se esquiva de mais uma responsabilidade proposta por Deus em sua vida. No cinema, em um longa-metragem, terá a sua história contada por um elenco, literalmente, “fantástico”. Glória Maria, Reynaldo Gianecchini, Thiago Lacerda e as Letícias Spiller e Sabatella estão entre os atores que se ofereceram para propagar o emocionante trabalho de Flordelis.
Seu DVD de estréia como cantora será gravado no Canecão, a convite dos proprietários da casa de shows mais importante do Brasil. E, mesmo que diga que seu corpo está cansado de tantas batalhas, ela não pára de trabalhar um só instante. Com sua habitual simplicidade, revela:
“Sempre há de existir uma força maior para quem quer realmente transformar o mundo”.

ENFOQUE – Você sempre valorizou as crianças em sua vida, mas como foi sua infância?
FLORDELIS – Normal. Eu devia ter uns três anos quando minha mãe se tornou evangélica e, depois, meu pai. Éramos cinco filhos e vivi dificuldades que toda família pobre passa. Mas também vi a situação de outras crianças que não tinham o mesmo privilégio que eu – uma mãe e um pai presentes.

ENFOQUE – E como era a Flordelis criança?
FLORDELIS – Minha mãe diz que eu era quietinha. Fui criada na igreja e aos 12 anos já dirigia um trabalho de libertação. Meu pai era músico e formou um conjunto musical chamado Grupo Angelical, no qual eu cantava e viajava pelo Brasil. Era maravilhoso, e isto durou até os 14 anos. Um dia, na Via Dutra, o grupo sofreu um acidente e só sobraram eu e meu irmão. Depois de superar a tragédia, continuei a fazer meu trabalho missionário.

ENFOQUE – Alguma vez aconteceu algo que fez você sentir que iria trabalhar com crianças?
FLORDELIS – Acho que eu já tinha um chamado de Deus para isso, mas aconteceu meio que por acaso. Eu me criei dentro da favela, no meio do tráfico de drogas, vendo amigos morrendo, e o que mais me espantava era a omissão das mães. Achava que elas podiam fazer mais que chorar ou se queixar. Quando me tornei adulta, resolvi fazer esse papel, agir por aqueles filhos. E aí comecei a andar sozinha de madrugada pela favela.

ENFOQUE – Mas você tinha algum apoio da igreja?
FLORDELIS – Não. Era algo independente. As pessoas tinham medo quando se falava em tráfico de drogas. Isso foi por volta de 1990. Quando se cogitava em evangelismo na madrugada, todos se assustavam, porque ninguém queria colocar a vida em risco. Aí, decidi ir sozinha. E como sexta-feira é o dia de maior movimento nas favelas, ia para a rua à meia-noite e andava no meio deles, conversando com os meninos mais novos. Queria entender o que os levava para as ruas, a cheirar cocaína, fumar maconha. Eram meninos de 10 e 11 anos e era assustador.

ENFOQUE – Traçando um paralelo entre os anos 90 e hoje, você acha que os riscos de fazer um trabalho como esse, na favela, são os mesmos?
FLORDELIS – Acho que os perigos são os mesmos. Tive o risco de morrer, sofri ameaças e recebi mandado até do Bangu 1 para ser assassinada. Minha mãe e minha família fugiram de casa para não serem assassinadas. Eu enfrentei a situação porque queria provar para aqueles garotos que o que estava fazendo era o melhor para a vida deles.

ENFOQUE – E isto ainda sem o suporte da igreja?
FLORDELIS – Levou uns sete meses até que eu conseguisse convencer as pessoas a fazerem alguma coisa. Na época, fui até chamada de missionária do Comando Vermelho só porque a favela era do Comando Vermelho. Mas as coisas somente começaram a mudar quando os irmãos puderam ver a glória de Deus naquele lugar.
Houve uma guerra entre os traficantes do Comando Vermelho e do Terceiro Comando. As pessoas que moravam na favela do Jacarezinho não podiam atravessar para a favela de Manguinhos e, como alguns meninos foram expulsos, fugindo para Manguinhos apenas com a roupa do corpo, suas mães começaram a me pedir ajuda. Eu lhes disse que poderiam levar roupas e tudo o que fosse preciso para os filhos delas do outro lado. Peguei minha Bíblia, atravessei a pista e fui. Quando voltei, o Cocada, que era o chefão da favela, estava me esperando com os comparsas dele para me matar. Ele alegou que eu não tinha o direito de atravessar para o lado inimigo sem autorização para isso e que ele era o dono do morro.
Naquela hora, vi a autoridade do Espírito Santo e disse que ele não era dono de nada, não era dono nem do próprio nariz. Era só dono da boca-de-fumo, e quem era dono de minha vida era Jesus. Ele me achou louca porque naquela semana tinha assassinado uma evangélica, desfilando com seu corpo dentro de um carrinho pela favela. Por isso me achou doida por tê-lo enfrentado, mesmo sabendo daquele episódio. Disse que estava perdendo tempo com uma maluca e foi embora. E eu continuei fazendo o meu trabalho missionário.

ENFOQUE – E como surgiu a história das crianças em sua vida?
FLORDELIS – Depois de algum tempo, uns jovens da igreja batista e de outras denominações vieram à minha casa e pediram para participar daquele trabalho. A gente se encontrava às sextas-feiras, orava e saía para as ruas. Um dia, um menino foi colocado no paredão da morte pelos traficantes e a mãe dele foi até a minha casa para pedir oração. Na verdade, ela queria oração por ela, e não pelo filho. Queria pedir consolo para seu coração, mas nada por ele. Era isso que eu percebia nas mães, sempre omissas. Eu orei. Mas como oração é ação, eu disse que ia atrás do filho dela, ia tentar fazer alguma coisa. Fui andando pela favela, procurando onde estavam os bandidos, e achei o “bonde”. Eles me receberam, achando que eu tinha ido evangelizá-los. Só que eu falei que tinha ido orar por um menino que eles iam matar naquele dia. O gerente do tráfico que comandava o grupo deixou eu passar e encontrei o menino amarrado, machucado.
Era um adolescente de uns 13 anos. Orei por ele e, quando terminei, pedi ao gerente do tráfico para soltá-lo, o que eu só conseguiria se fosse falar diretamente com o chefe geral. Fui também até ele, que zombou de mim, surpreso com minha audácia. Afirmei que tinha ido ali para dar uma ordem de Jesus e ofereci a minha vida em troca da vida do menino, caso ele fizesse alguma coisa errada. Ao ser solto, levei-o para minha casa. Aquilo me deu mais forças para continuar e fez com que outros grupos de oração viessem se juntar comigo no trabalho da madrugada. Depois acabei indo evangelizar na Central do Brasil.

ENFOQUE – Foi uma expansão de seu trabalho?
FLORDELIS – Sim. Mas fui para a Central do Brasil com um objetivo e Deus agiu totalmente diferente. Na ocasião, fui procurar uma menina da favela que tinha fugido de casa por causa de drogas e a notícia era de que ela estava perambulando pela Central do Brasil. Cheguei lá e me deparei com um monte de crianças no calçadão e muitas mulheres com crianças no colo. Olhei aquela cena, tentando entender o que era aquilo. Era algo que a gente vê na televisão, mas desconhece pessoalmente. Vi um casal de bebês gêmeos com a mãe dando uma lata de leite condensado com uma colher. Fiquei paralisada. As pessoas passavam por ali e ninguém fazia nada, sequer olhava. Em seguida, vi uma menina drogada, meio louca, porque ela ria e chorava ao mesmo tempo, pertinho dos nenês.
Fui para o ponto de ônibus para ir embora, mas a cena não saía da minha cabeça. Decidi voltar. Comecei a conversar com aquela menina, perguntando sobre o que estava acontecendo. Ela contou histórias de sua vida pessoal e revelou que estava de resguardo. Eu perguntei sobre o bebê e ela disse que tinha acabado de jogar no lixo. Pedi que me levasse ao local e ela me acompanhou até um terreno baldio, onde estava uma menina com 15 dias de nascida. Peguei a criança e levei-a para casa, junto com a mãe, mas ela não quis ficar. Largou o neném comigo e foi embora. E eu ganhei aquele presente de Deus.

ENFOQUE – Foi dessa forma que você começou a levar crianças para sua casa? FLORDELIS – Foi. Dois dias depois, voltei à Central do Brasil para procurar aquele casal de gêmeos. Quando cheguei, fazendo o que chamávamos de Arrastão de Deus, evangelizando, orando e ajudando, soube que os bebês tinham ido para o hospital Souza Aguiar porque estavam muito doentes. Lá, uma pessoa acidentada havia acabado de chegar e, com a distração dos encarregados da entrada, passei de fininho, subi as escadas e fui para a enfermaria de crianças. Achei os bebês e passei a visitá-los por 18 dias. Quando receberam alta, pensei em devolvê-los à mãe, que eu conhecia. Só que as crianças eram portadoras do vírus HIV e a médica disse que se eles voltassem para a rua, iriam morrer. Resultado: levei mais duas crianças para casa.

ENFOQUE – Como foi ampliar o tamanho de sua família?
FLORDELIS – Em 1994, teve uma matança de crianças na Central do Brasil, quando um policial, de dentro de um carro, atirou em algumas delas. Matou uma menina de 1 ano e 6 meses e um menino de 11 anos e ainda baleou outros que, graças a Deus, não morreram.
Naquela madrugada, lembro que fui até a Central do Brasil para ver se a história que estavam me contando era verdade. Lá, vi as crianças mortas e, entre os feridos, havia uma menina de três anos, ainda viva, com uma bala alojada no fígado. Naquela ocasião, uma mãe foi pedir minha ajuda e, de uma só vez, fiquei com 37 crianças, morando numa casa pequena na favela do Jacarezinho.

ENFOQUE – O que você pensava diante dessas dificuldades?
FLORDELIS – Acho que tudo o que acontece em nossa vida tem dois lados: o negativo e o positivo, e a gente deve sempre olhar mais para o lado positivo. Tem que tirar um aprendizado das coisas. Eu nunca fui de ter pensamentos de derrotas, de fracassos. Segui minha vida, fazendo a obra de Deus, que me preenchiam e preenchem até hoje.

ENFOQUE – E como aconteceu o Anderson em sua vida?
FLORDELIS – Anderson veio da igreja batista, interessado no trabalho missionário que eu fazia na favela. Ele bateu na minha porta com outros jovens e disse que queria passar as mesmas experiências, viver as mesmas coisas que eu vivia. Começamos a fazer evangelismo na madrugada, ele foi se envolvendo cada vez mais com a gente, subindo o morro, ajudando as pessoas. Depois de um tempo, nos casamos e vivemos algo muito louco e muito lindo, uma coisa de Deus.

ENFOQUE – Tendo quatro filhos seus e mais as crianças abrigadas por você, como foi o processo para ficar definitivamente com eles?
FLORDELIS – No início de 1994, eu tinha 37 crianças em uma casa pequena na favela. Havia um grupo de extermínio me procurando – era o pessoal lá da Central do Brasil que achava que eu sabia algo contra eles. Depois passamos por uma luta com o Juizado de Menores porque eu era uma mulher da favela cuidando de crianças em excesso. Foi quando apareceu o Betinho, do Ação pela Cidadania, que colocou minha história na televisão, pedindo ajuda. Até então, ninguém me conhecia. Quando apareci na mídia, o Juizado soube e determinou que eu não podia ficar com as crianças por ser pobre e favelada. Disseram que elas iriam para um abrigo, que os irmãos seriam separados etc.
Eu disse ao juiz que não entregaria as crianças e ele me pressionou dizendo que era uma autoridade. Eu me apresentei, dizendo que me chamava Flordelis, serva de um Deus vivo, que é o Juiz dos juízes, autoridade maior no céu e na terra, e que ninguém pegaria minhas crianças. Ele expediu um mandato de prisão por desacato à autoridade, busca e apreensão das crianças. Só que Deus abriu a porta de uma casa em Irajá e eu fugi para lá. Larguei mobília, saí com a roupa do corpo e fiquei escondida por quatro meses.
Como é impossível se esconder com muitas crianças, o Juizado acabou me achando. No dia eu não estava em casa. Estava com Betinho e meu marido. Ao chegar, meu filho Carlos estava na rua me esperando e deu a notícia. Comecei a chorar, achando que tinham levado meus filhos. Mas ele me acalmou, dizendo que todos tinham fugido pelos fundos da casa enquanto as autoridades batiam na porta da frente. Estavam todos na pracinha de Irajá me esperando. Como não podíamos mais voltar para casa, dormimos na rua. Certa noite, acordamos de madrugada com um monte de bandidos ao redor, querendo saber o que eu estava fazendo ali. Eu disse que só queria dormir e, quando amanhecesse, iríamos embora. Quando o dia clareou, a associação de moradores de Parada de Lucas nos deu abrigo e ali ficamos escondidos por mais quatro meses. Eu acabei saindo em vários jornais do Rio como seqüestradora de crianças.

ENFOQUE – Como você conseguia alimentar e cuidar de tantas crianças? FLORDELIS – Durante três meses, o Ação pela Cidadania, do Betinho, me ajudou. Enquanto eu estava no Jacarezinho, a comunidade me ajudava muito, até nas fugas. Um dia, apareceu um moço chamado Pedro Werneck, que tinha visto a reportagem na televisão. Ele passou a me dar 50 reais semanalmente. Mas era uma ajuda anônima. Quando o jornal me colocou nas manchetes como seqüestradora, ele parou com a ajuda.
Decidi ligar para ele e me explicar, contando minha verdadeira história. Pedro diz que o que o convenceu naquele tempo foi quando eu disse que jamais abriria mão de meus filhos. Ali, ele mudou de idéia e resolveu me ajudar a pagar o aluguel de uma casa. Dessa vez, fomos todos para Rio Comprido. Ele é quem foi conosco ao Juizado de Menores e se responsabilizou por tudo. O juiz não era mais aquele que tinha mandado me prender. No lugar dele estava Ciro Darlan, que disse que havia oito processos contra mim. Propôs fazer um acordo caso eu conseguisse fazer tudo o que o Estatuto da Criança exigia, em um período de 30 dias. Cumpri tudo!
Doutor Ciro foi pessoalmente à minha casa ver tudo de perto e ficou surpreso. Sempre fomos uma família. Cada um tem as suas próprias coisas e é responsável por elas. A individualidade faz surgir a responsabilidade. Por isso, lutei para que meus filhos não fossem para abrigos, porque lá as crianças não têm histórias, não têm seu canto, sua privacidade. Uma criança sem história é um adolescente sem sentimento. Assim, para eles, matar e viver são a mesma coisa.
Quando doutor Ciro viu minha família, se emocionou e aí me deu a guarda das crianças. Só que entrar com o pedido de adoção era bem mais difícil. Tive de me tornar primeiro uma instituição. Foi quando nasceu a associação Lar Família Flordelis. Tudo porque não abria mão de ficar com meus filhos.
Muitos me chamaram de louca, pensando em como eu ia sustentar tanta criança. Como tinha parado de cantar nas igrejas, depois do acidente com o Grupo Angelical, decidi voltar e comecei a vender os CDs que meus próprios filhos me ajudaram a produzir. Hoje, meus filhos dizem que querem trabalhar para ajudar em casa, mas eu respondo que quero que eles estudem e se preparem para dar o melhor para a família deles. Costumo dizer a eles: “Quem precisa ir à luta e trabalhar por vocês sou eu, como mãe, e o pai de vocês”. Agora é nossa vez de trabalhar para dar um futuro limpo para todos eles.

ENFOQUE – E as igrejas, passaram a valorizar mais seu trabalho? FLORDELIS – Sim. Eu comecei a ser convidada para contar as experiências pelas quais tinha passado na favela. Às vezes, a mesma igreja que fechara a porta para mim, numa outra época, resolvia agora me convidar. Infelizmente, a discriminação é muito grande com a criança de rua. Quando um grupo que evangelizava comigo soube que meus bebês tinham HIV, sumiu. É fato: crianças, quando vêm da rua, não vêm saudáveis, mas trazem doenças, sarna, são usuárias de drogas. Então, as mães proibiram os filhos de irem à minha casa. Eu já era vista como louca no meio do povo de Deus, mas nada me fez parar. Deus trabalha no tempo. Hoje, o casal de gêmeos foi negativado do HIV e os dois até apareceram no Fantástico. A partir daí, muitos foram me convidando para pregar e cantar.
Foi Pedro Werneck, que nem é evangélico, que acreditou em mim e me ajudou a gravar o primeiro CD. É com esta venda que consigo manter minha casa.

ENFOQUE – E como aconteceu sua projeção entre os artistas? FLORDELIS – A irmã da Marlene Mattos tinha ido a uma igreja e ouviu alguém comentando sobre meu testemunho. Na época do Dia das Mães, eles me ligaram para participar do programa da Xuxa, mas eu achei que era trote. Só que era verdade, e eu acabei sendo homenageada como a mãe do Brasil em uma gravação que durou 25 minutos. Dali em diante fui conhecendo todo o mundo. O produtor artístico Marco Antonio Ferraz assistiu ao programa da Xuxa no aeroporto e já ligou para mim. Isso foi no ano 2000.

ENFOQUE – O segmento artístico teve que tipo de reação? FLORDELIS – O Marco Antônio passou a freqüentar minha casa e gostar das crianças. Só que ele não acreditava na minha história. Estava me investigando. Até que um dia eu o chamei para ir comigo ao Jacarezinho. Quando subimos, ele começou a ficar assustado, vendo os garotos armados. Tinha um grupo que havia acabado de chegar de um “ganho” muito bom e estava festejando naquela madrugada. Eu fiquei feliz por poder estar ali e orar com eles. Mas era uma turma nova que não me conhecia muito bem. Mesmo assim, me apresentei e comecei a falar de Jesus. Aí chegou o chefe do tráfico, querendo saber o que estava acontecendo e eu disse que era a missionária Flordelis, que queria orar por ele, e que ele precisava mudar sua mentalidade. Ele me respeitou e Marco ficou olhando.
Só que eles estavam indo matar um menino entre 12 e 13 anos e eu vi o garoto, já sem roupa e com as mãozinhas amarradas. Olhei para o chefe, olhei para o menino, e assim ficamos. Até que ele deu ordem para soltar a criança, que ouviu deles que só não tinha morrido por causa da “tia” de Deus. Marco ficou muito emocionado e passou a acreditar em mim.
Aos poucos, ele foi trazendo outros artistas, como a Ana Furtado, a Fernanda Lima, que hoje freqüenta nossa casa e não tinha a menor idéia do que era uma igreja evangélica. Elba Ramalho e a Xuxa também nos visitam.
Acho que o maior impacto deles é ver a transformação de meus filhos. Um deles era gerente do tráfico e está se formando como advogado. Outro trabalha no Detran, outro é seminarista. Para muita gente, é impossível que uma menina que vivia na prostituição tenha hoje uma nova mentalidade. Infelizmente, muitos desses artistas têm uma experiência ruim com o Evangelho. Eles mesmos se sentem discriminados. Quem tem Jesus deveria atrair as pessoas para o Evangelho e não afastá-las.

ENFOQUE – O que você vê de mais problemático na vida das crianças de rua?FLORDELIS – O maior problema dessa criança não é ela, mas sua família. É por causa dos problemas dentro da família que crianças vão para a rua. Elas não acham a rua legal porque não é. Eu vi isso na prática. Na época, tinha pena das mulheres que eu via na rua. Hoje sei que são apenas uma máquina de fazer filhos. A maioria delas não é mãe de verdade. Elas usam os filhos para ganhar dinheiro e para se dar bem.
Hoje eu atendo a mães da comunidade por meio da igreja a fim de ajudar na educação. Falo com meninas que estão sofrendo abuso sexual dentro de casa, e não são poucas. Vejo que as famílias de hoje não têm nenhum preparo, e nem a igreja prepara crianças e jovens para os dias atuais. Há garotos e garotas que vêm de famílias com problemas de alcoolismo, drogas, violência, separações e vão formar outras famílias também desajustadas.

ENFOQUE – Você acha que a igreja está preparada para intervir em tudo isso?flordelis – A igreja tem seus cultos e faz seus trabalhos sociais. Dá cesta básica e alimenta alguns “pobres coitados”, que já são discriminados pela própria igreja, que os trata de forma diferente. Raramente, a gente vê a igreja preocupada em fazer um trabalho focado na criança, para mudar a situação. Muitas vezes, adolescentes e jovens são taxados de rebeldes e, quando somem da igreja, ninguém vai atrás deles. Na verdade, eles acabam sendo um problema que foi embora da igreja, que se viu livre deles. E assim fica difícil melhorar o mundo porque o Governo, a sociedade e a igreja nada fazem.

ENFOQUE – E como surgiu o filme sobre sua vida?FLORDELIS – Primeiro fiz umas fotos na favela com um fotógrafo muito famoso chamado Cláudio Capri. Ele foi se envolvendo e se emocionando com tudo e acabou querendo fazer um filme sobre minha vida, junto com o Marco Antônio. Eles queriam mostrar toda a história e chamaram um cineasta, montaram cenário, convidaram apenas oito artistas e também chamaram outros fotógrafos para fazer algo bem simples.
Só que outros artistas iam sabendo das filmagens e também queriam participar. Como a gente não queria deixar ninguém de fora, o elenco foi aumentando. Até a Xuxa, que tinha contrato exclusivo com a Globo, decidiu fazer assim mesmo. Disse que pagava os custos do processo e fez as gravações. Glória Maria, que só faz trabalho para o Fantástico, também fez a narração. E o simples acabou virando um longa com 26 artistas atuando. Todos se ofereceram para participar.

ENFOQUE – Você sabe que hoje, depois de tudo o que enfrentou, pode estar passando por um dos maiores riscos de sua vida, que é o perigo da vaidade diante de tanto sucesso?
FLORDELIS – Sei. E eu sempre falo para os meus filhos: se um dia vocês me virem saindo de meu foco, de meu objetivo principal, falem comigo, me acordem, chamem minha atenção. Só que eu sei que Deus fez um milagre na minha vida, que é não me deixar impressionar por coisas que parecem ser muito grandes. Quando estive no programa da Xuxa, muita gente pensou que eu ia ganhar muito dinheiro. Mas eu disse a ela que não estava precisando de nada. Minha intenção é mostrar que tenho um Deus que é grande. E como posso mostrar isso se, logo em seguida, apareço de canequinha na mão, pedindo ajuda? Eu não posso fazer isso porque vou estar tirando a grandeza de Deus.
Se alguém quer fazer algo por mim, vá até a igreja comigo e escute a Palavra de Deus. E não importa se um é gay, o outro é ateu... Jesus ama cada um e morreu na cruz por mim e também por essas pessoas. Jesus é simples, a gente é que complica. Ele tem uma maneira simples de atrair as pessoas. Se a gente deixar Jesus fazer do jeito dEle, a gente ganha muito mais pessoas do que perde.
Infelizmente, tem muita gente de canequinha na mão por aí. Mas se Jesus pode tudo, Ele pode tocar na vida de qualquer um para que ajude nos trabalhos missionários, sem que a gente precise pedir. É ao Espírito Santo que devemos pedir. Eu não preciso da ajuda financeira desses artistas, mas da amizade e do carinho deles. Eles não me ajudam com dinheiro, mas com a imagem que me emprestam.
ENFOQUE – O que você deseja falar, como mãe, para outras mães que irão ler seu depoimento?
FLORDELIS – No mundo de hoje, vejo as mães muito ocupadas, com necessidade de construir sua independência, o que faz com que elas estejam ausentes na vida dos filhos. Mas, por mais cansada e sem tempo que esteja, uma mulher nunca pode abrir mão de seu papel como mãe.
Aquelas que têm filhos rebeldes, problemáticos, doentes, que nunca desistam deles. Briguem por eles e corram atrás deles porque lá na frente vai valer a pena. Porque não existe ex-filho ou ex-filha. Não adianta pegar uma filha que engravidou, um filho que se tornou gay ou traficante e colocar para fora de casa. Eles não vão deixar de ser seus filhos. Se as mulheres cumprirem bem a sua função como mães, elas vão vencer todos os problemas que dizem respeito aos filhos.
Hoje, depois de muitos anos, eu consegui a adoção de meus filhos. E eles são o meu maior presente nesta vida.

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